Ainda ele vinha a subir as escadas e Joana já o ouvia cantar: “Era uma vez uma rena…” Joana soltou um gemido e gritou pela mãe, atarefada na cozinha:
— O Rudolfo já lá vem!
Jacob era o nome verdadeiro de Rudolfo e era o irmão mais novo de Joana. Andava na primeira classe e fora lá que lhe ensinaram aquela canção idiota e esquisita. Por acaso, a culpa era da Olívia, que no ano passado lhe tinha oferecido a rena Rudolfo em peluche.
“…chamara-lhe Rudolfo…” Jacob abriu a porta e não parava de cantar, enquanto tirava a roupa. “… com o nariz vermelho…” Joana levou as mãos aos ouvidos. Era de ficar maluca!
— Mãããe! — gritou em socorro. Mas a mãe limitou-se a aparecer à porta da cozinha, rindo enquanto limpava as mãos.
Jacob não largava Rudolfo, embora Joana já lhe tivesse explicado cem vezes que aquele boneco era só para o Natal. Pelo volume da canção, reparou que o irmão se dirigia ao quarto dela.
Quando a porta se abriu, uma almofada voou direita à cabeça de Jacob acompanhada de uma ordem:
— Cala a boca!
— Estás maluca? — Jacob deu um pontapé à almofada. — Sempre é melhor do que a tua Brita Suspiro! — respondeu-lhe furiosamente.
— Chama-se Britney Spears!!
Joana estava farta. A voz da mãe pôs fim à briga.
— Já chega. A comida está pronta.
Mal se sentaram à mesa, Jacob começou a tagarelar. “Já é muito bom que não cante!”, pensou Joana com um ranger de dentes.
— Esta manhã encontrei nas escadas a Dona Carminda e hoje à tarde também — Jacob estava lançado.
— As coisas excitantes que te acontecem! — felicitou-o Joana com ironia. Não gostava da velha Dona Carminda. Morava no rés-do-chão, devia ter no mínimo cem anos e era caturra. Resmungava se não se limpava devidamente os pés, quando se fazia barulho… e, de uma vez em que Joana deixara a porta aberta, quase cuspira veneno. Está bem, era Inverno, mas um pouco de ar fresco nunca fez mal a ninguém.
— E depois? — perguntou a mãe.
— Depois dei-lhe o Rudolfo.
— O quêêê?
O grito de Joana foi tão repentino, que um tortelini lhe saiu a voar da boca por cima da mesa como uma flecha.
— Ugh! — disse Jacob e explicou à mãe, que o olhava de boca aberta: — Hoje de manhã meteu conversa comigo porque há muito tempo que me ouve cantar.
— Tenho a certeza que te disse para fechares a boca — disse Joana.
— Não, nada disso! Até gostou e quando eu voltei agora, perguntou-me como estava o Rudolfo.
— E tu ofereceste-lho? — Joana ainda não podia acreditar.
— Não, só lho emprestei — respondeu Jacob com um encolher de ombros. — Achou-o tão querido e ela está tão sozinha… e disse que devíamos passar por lá um dia destes para provar o bolo de fruta dela.
— Nóóós?
— Claro, os dois, foi o que ela disse. E também disse — e fez uma careta de enjoo — para levar a minha bonita irmã. Só tenho uma, não é? — disse, virando-se para a mãe com um sorriso amarelo.
— Eu não vou! — disse Joana peremptória.
— Vá lá — a mãe beliscou-lhe a face. — Daqui a pouco é Natal. Faz isso por gentileza. Não têm de ficar muito tempo. A senhora não deve receber muitas visitas e de certeza que fica contente.
— Eu não vou — repetiu Joana decidida. Mas acabou por ir porque Jacob lhe disse que a Dona Carminda ia julgar que ela era uma medricas.
— Então vamos já amanhã à tarde! — decidiu.
A mãe deu-lhes uma pequena vela para levar, o que deixou Joana mais contente, porque não fazia ideia do que dizer à Dona Carminda. Em frente da porta, teve uma sensação esquisita. Se calhar a senhora ia começar imediatamente a resmungar e o idiota do irmão, depois de tocar à campainha, entusiasmado, saltitava de uma perna para a outra, como se fossem visitar o Pai Natal em pessoa.
— Olá! Mas que bela surpresa! — disse a Dona Carminda radiante, assim que abriu a porta. — Não vos esperava tão cedo. Ainda bem que já fiz o meu bolo.
Jacob deu uma cotovelada a Joana, apontando para o embrulho que levava nas mãos.
— Ah, sim. Hum, tome, da parte da mãe, para o Natal.
— Não, é de nós todos — protestou Jacob.
Aquele “graxista”… Joana lançou-lhe um olhar fulminante que ele, infelizmente, não viu, porque estavam a entrar.
— Fico muito contente — disse a Dona Carminda, radiante, a Joana. — Já estava a pensar que talvez tivesses ficado zangada comigo no outro dia por te ter ralhado por causa da porta.
Jacob ia falar, mas reteve o comentário ao ver o olhar de Joana.
— Ah, não — respondeu ela, corando ligeiramente.
— Vamos para a cozinha — disse a anfitriã. — Exagerei um bocado, é verdade, mas primeiro, estava doente e depois, há sempre tanta corrente de ar cá em casa! Vamos passar uma esponja por cima disto, está bem? Já moramos há tanto tempo no mesmo prédio e não nos conhecemos. Mas o teu irmão já me falou muito de ti.
— O quêêê?
Jacob esquivou-se rapidamente para a cozinha. Estava quente e havia uma mistura de aromas muito agradável.
— Vou fazer um café para mim e um chocolate quente para vocês e depois vão provar o meu bolo de frutas. É a minha especialidade, mas lá por isso não tem de agradar a todos.
Colocou a vela da mãe em cima da mesa e o olhar iluminou-se-lhe.
O bolo estava delicioso e o chocolate quente era muito diferente do que Joana e Jacob estavam habituados. A Dona Carminda falou-lhes dos Natais da sua infância e Joana, esquecendo-se que talvez tivessem sido há cem anos, ria-se com gosto. Só quando acenderam a vela, porque estava a anoitecer, é que reparou que já lá estavam há muito tempo. Mesmo assim, a Dona Carminda acabou por dizer:
— Acho que é melhor irem agora para cima. Venham visitar-me quando quiserem. E para o caso de não nos vermos antes do Natal, tenho uma coisinha para cada um.
Abriu um armário e tirou o Rudolfo de Jacob.
— O médico de bonecas fez uns melhoramentos ao teu amiguinho. O pobrezinho já estava bastante estragado.
Depois virou-se para Joana:
— Espero ter acertado. O Jacob disse-me que eras uma grande fã da Brita Suspiro — não faltava muito para Joana rebentar mas, antes de ela explodir, a Dona Carminda disse: — Mas depois cantarolou-me uma das músicas e eu acho que é a Britney Spears, não é?
Joana ficou de boca aberta mas, por sorte, desta vez não havia tortelinis lá dentro. A Dona Carminda ria a bom rir ao entregar-lhe o Cd.
— Imaginas a cara que fizeram na loja ao verem uma velhota pedir Britney Spears?
Jacob deu primeiro um beijo no nariz do Rudolfo e depois outro à Dona Carminda.
Joana não fez o mesmo mas dali para diante passou a fechar sempre a porta com cuidado e de vez em quando a visitar a senhora e comer bolo de fruta com chocolate quente.
http://preparandonatal.wordpress.com/2012/11/20/rudolfo-e-brita/#more-988
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